O dom da escuta

29/04/2014 22:41

Foto_ODomDaEscuta_02_sumarioNó na garganta, vontade de desabafar, de expressar todo o turbilhão de emoções que estão interiorizadas. Para que esse nó seja desatado, há a necessidade de uma pessoa disposta a escutar, não necessariamente alguém que dê conselhos, mesmo com a melhor das intenções, mas apenas um “ouvido amigo”, uma testemunha de uma dor, de uma situação difícil. Consciente da importância do ato de desabafar, foi lançado, em setembro, o livro Serviço de Escuta: o que é e como implantá-lo (Ave-Maria). Escrita pela jornalista Ligia Terezinha Pezzuto, a obra é um manual prático de como se tornar um bom ouvinte, sem direcionar o interlocutor em caminhos opinativos, mas dar a chance de o nó ser desatado. De acordo com a autora, não é todo mundo que está preparado para ouvir, e muitas pessoas perdem logo a paciência, querem opinar do que escutar e esquecem-se de que o ouvir, por si só, liberta. “Os voluntários não têm a pretensão de realizar o trabalho que é de um profissional como o psicólogo e psiquiatra. Nós escutamos aqueles que precisam desabafar e que estão estressados ou angustiados. Geralmente, as pessoas que nos procuram não têm nenhum amigo ou familiar para conversar, ou, simplesmente, não querem expor para seus conhecidos determinada situação”, disse.

A obra é fruto de nove anos de experiência de Ligia à frente do Serviço de Escuta. No final, o leitor encontra três anexos: um termo de adesão de serviço voluntário; roteiro de trabalho do Serviço de Escuta; e a Lei do Voluntariado (Lei n. 9.608, de 18 de fevereiro de 1998). Não basta apenas ler o livro para iniciar o trabalho; há cursos anuais, promovidos pelo Grupo de Apoio ao Serviço de Escuta de São Paulo, coordenado pela jornalista. Os interessados reúnem-se durante quatro sábados para receber orientação de como escutar as pessoas, que muitas vezes chegam às paróquias precisando desabafar. Como fiel do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Ligia queria contribuir de alguma forma para ajudar as pessoas. Foi então que se identificou com o Serviço de Escuta. Após um ano, ela organizou uma confraternização entre os voluntários de diversas paroquias que promoviam o trabalho. A jornalista resolveu promover o encontro por causa dos questionamentos provenientes de algo dito por seu orientador espiritual na época, padre Vicente de Paulo Moretti Guedes, de que a escuta estava dispersa, sem interação e unidade. A percepção dessa realidade fez que se sentisse inquieta e tentasse congregar os Serviços de Escuta.

Muitos têm a impressão de que somente com conselhos é possível ajudar o outro. Mas na verdade o fato de conversar sobre determinada angústia, o desabafar, já ajuda muito e faz com que a pessoa tenha clareza para solucionar o problema

No projeto, há cerca de 150 voluntários, presentes em vinte paróquias do Estado de São Paulo. O livro é uma forma de fazer que as demais igrejas conheçam em detalhes o trabalho e se interessem em realizar o serviço em sua comunidade. Tudo começou na década de 1970, quando o frei franciscano Edgar Weist percebeu que muitos fiéis queriam conversar sobre assuntos que não estavam ligados à confissão de seus pecados. Foi então criado o trabalho Porta Aberta, no Santuário São Francisco. Três anos depois, em Brasília, foi fundado o Pronto-Socorro Espiritual (Prose). Surgiu no ano de 1977, na cidade de Campinas, a terceira iniciativa: Aconselhamento de Pastoral, cujo nome foi mudado para Escuta Cristã e teve orientação do professor Mauro Amatuzzi. Este trabalho propõe o acolher com simpatia; compreender como se estivesse no lugar da pessoa e eventualmente dizer uma palavra que faça pensar, não uma palavra que dê solução ou conselho, mas que faça pensar.

A apresentação do livro foi escrita por frei Hipólito Martendal, psicólogo, que conhece o Serviço de Escuta há anos. Para ele, a iniciativa é o primeiro ramo da psicologia, que não necessariamente, necessita de formação acadêmica. “Uma pessoa treinada com boa vontade pode atender bem, escutar bem alguém, sem se envolver no problema”, explicou. Para o frade, é cada dia mais difícil encontrar uma pessoa disposta a ouvir, pois o crescente individualismo inviabiliza conversas. Isso vai minando a ação das pessoas de escutar o próximo, tornando-as, assim, insensíveis à dor do outro. “Muitos têm a impressão de que somente com conselhos é possível ajudar o outro. Mas na verdade o fato de conversar sobre determinada angústia, o desabafar, já ajuda muito e faz com que a pessoa tenha clareza para solucionar o problema”.

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Ligia Terezinha Pezzuoto

Segundo Ligia, quem se decide ajudar o próximo deve se basear nos ensinamentos de Jesus, que com paciência, amor e sabedoria, ajudava o outro a libertar-se da angústia. No livro, há trechos bíblicos que mostram a relação de Jesus com o próximo, como o caso dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35). Nessa passagem, enquanto caminhavam pela estrada, os discípulos estavam tão angustiados com tudo aquilo que havia acontecido em Jerusalém que nem perceberam que Jesus conversava com eles ao longo do caminho, ouvindo suas angústias. “Nosso intuito não é converter ninguém para nossa religião, mas sim ajudar. Tanto que cerca de 50% das pessoas atendidas são católicas e 90% utilizam o Serviço de Escuta apenas uma vez. Não ficamos marcando conversas frequentes com as pessoas. Não são sessões, é apenas uma conversa, e em poucos casos duas ou três”, explicou a voluntária Olga Regina Crotti, da Paróquia São Luiz Gonzaga (Avenida Paulista). Ainda segundo ela, que é voluntária há oito anos, dependendo do caso, o voluntário pode indicar serviços como atendimento psicológico profissional e Alcoólicos Anônimos (AA).

A voluntária Maria Aparecida Gomes, que promove o serviço na Paróquia Imaculada Conceição (Avenida Brigadeiro Luís Antônio), explica que, como o a igreja fica perto de hospitais, frequentemente entram no local doentes ou parentes de enfermos. E, ao verem o cartaz com informações sobre o Serviço de Escuta, solicitam uma conversa. “Muitos vêm com o coração carregado de preocupações. Pessoas que estão doentes precisam conversar, e muitas vezes não querem preocupar os familiares”, disse. O atendimento dura cerca de cinquenta minutos. O ato de conversar sobre as situações da vida pode evitar que as pessoas apresentem quadros depressivos e transtornos de somatização. De acordo com frei Hipólito, muitas pessoas passam por um momento de tristeza e acreditam que têm depressão e que somente se forem medicadas ficarão melhores. “Há casos em que uma boa conversa faz a pessoa se sentir aliviada e com forças para reagir às situações difíceis, evitando que tenha depressão”, explica.

Para ser voluntário, não basta apenas ter paciência. É necessário ter disponibilidade para acolher, ouvir, respeitando crenças e convicções; tomar conhecimento da estrutura do serviço de escuta: seus objetivos, plantões, reuniões; participar de um treinamento inicial; manter o sigilo e ética profissional. A iniciativa tem sido tão bem-sucedida que paróquias fora da cidade de São Paulo têm implantado o serviço, como é o caso das cidades de Santos e Santo André.

Quinto Piazza, paroquiano da Paróquia Nossa Senhora das Dores (Ipiranga), é voluntário do Serviço de Escuta há cinco anos. A igreja possui nove voluntários e sempre promove o Serviço de Escuta com cartazes e outros meios de divulgação. Segundo ele, muitas pessoas que foram auxiliadas com o projeto, depois de se recuperarem e resolveram seus problemas, decidiram ajudar o outro da mesma forma como foram ajudados. “Conheço casos de pessoas que desabafaram e que tiveram suas vidas transformadas e, hoje, vivem uma vida feliz”, disse. Exemplo disso é a aposentada Mirna Senerchio. Após a internação de um irmão, ficou emocionalmente abalada; então, começou a perder o sentido de coisas que antes lhe davam prazer, como atividades físicas. “Sentia uma tristeza muito grande, uma vontade de não fazer nada. Foi quando resolvi conversar um pouco sobre os meus problemas. O Quinto me ofereceu um ouvido amigo. Fui melhorando cada vez mais, percebi que tinha mais razões para sorrir do que o contrário”, disse.

two-women-talking-on-benchOutra pessoa que recebeu auxílio foi Rodolfo Giannetti. Deficiente visual, em determinado momento da vida, a falta de alguém para conversar sobre seus questionamentos ocasionou-lhe uma angústia constante. Ele pensou em procurar ajuda profissional, mas após ir à paróquia conheceu o Serviço de Escuta. Depois de muita conversa, teve forças para buscar soluções a seus problemas. Atualmente, sente-se bem melhor, e sua mulher, Elza Maria Costa Giannetti, tornou-se voluntária no serviço. Histórias como essas se repetem constantemente na vida dos voluntários, que deixam suas casas para realizar os plantões nas igrejas. O pagamento pelo trabalho realizado é feito em forma de sorrisos no rosto de quem chegou com o semblante perturbado. “É gratificante perceber que podemos com paciência e dedicação, fazer a vida de outra pessoa melhor”, finalizou Piazza.

Em de outubro de 2005, 42 pessoas, representando catorze paróquias da cidade de São Paulo, reuniram-se no Santuário do Sagrado Coração de Jesus (Campos Elíseos). O evento teve troca de experiências entre os presentes e abordou os seguintes temas: “Limite de Escuta, confissão e psicologia”; “O que a Igreja espera do Serviço de Escuta na atualidade”; “Para nós, leigos, como entender um Serviço de Escuta”; “Quem nos procura, o que espera encontrar?” O grupo não se limitou a apenas uma reunião e, aos poucos, foi definindo os conceitos relacionados à Escuta, como não ser diretiva, ser expressão de atitude cristã, mas não ter caráter religioso, destacando o fato de não se tratar de terapia. O grupo passou se reunir com frequência e a realizar cursos de capacitação para aqueles que gostariam de colaborar com o projeto. As formações foram ministradas por frei Hipólito Martendal, por padre Deolino Pedro Baldissera e pelo leigo Dionísio Martins da Silva. O primeiro curso, que teve a participação de dezoito pessoas, foi realizado em setembro de 2007, com carga horária de 30 horas/aula, divididas em oito sábados. Vale citar que, de 2001 até 2013, surgiram muitas igrejas que realizam o trabalho, porém algumas adotaram o nome Serviço de Escuta e outras, de Pastoral da Escuta.

Em um mundo em que se fala muito, poucos escutam verdadeiramente. Por isso, Serviço de Escuta: o que é e como implantá-lo é uma lição que todos podem aprender. Um verdadeiro serviço para a humanidade que está a todo tempo ocupada sem ouvir o irmão, o amigo, colega de trabalho e, por que não?, um estranho. Em troca, quem for ouvinte estimula a solidariedade e recebe melhoria na saúde espiritual de si mesmo.

 

Depressão

A cada ano, aumentam assustadoramente, no Brasil e no mundo, os casos de pessoas com depressão. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o transtorno, em 2030, será o mal mais prevalente, estando à frente de doenças como o câncer e doenças infecciosas. Segundo estudo epidemiológico publicado na revista especializada BMC Medicine, atualmente, 121 milhões de pessoas estão deprimidas em todo o mundo (número quatro vezes maior do que os soropositivos, que chegam a 33 milhões). No Brasil (levando em conta um período de doze meses seguidos), 18% dos entrevistados afirmaram que estão deprimidos há pelo menos um ano. As informações foram retiradas do São Paulo Megacity, um projeto do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. Com base em 5.037 entrevistados, o estudo avaliou a prevalência de distúrbios psiquiátricos na região metropolitana de São Paulo. Segundo estimativas da organização, em 2020 a depressão será a segunda maior causa de incapacitação no mundo.

Por Leiriane Correa


Matéria originária da Revista O Mensageiro de Santo Antônio Novembro de 2013

 


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